Life lessons: as skills adquiridas a programar ao nível underground/DIY
Existem diversas maneiras de entrar no mundo da produção e programação cultural. Cada indivíduo tem o seu background e certos festivais e entidades têm o seu Modus Operandi bem estabelecido. Para tentar entender o porquê de certos festivais ou promotores terem determinada maneira de funcionar, por vezes é importante perceber como se deu a sua iniciação na promoção/produção/programação.
Este artigo tem como foco principal dar a entender como é que um background em produção e programação de eventos culturais underground/DIY pode ser um catalisador para desenvolvimento de skills e aquisição de conhecimentos indispensáveis para uma carreira nas várias vertentes das indústrias culturais.
Uma breve contextualização do que é este meio do underground/DIY. Na sua maioria das vezes ligado a estilos musicais como o Punk, o Metal, Alternative, Hip Hop e Folk. Estilos que por vezes não se enquadram no contexto mainstream e têm a sua própria cultura e o seu próprio nicho (de colaboradores e público). Nestes casos é habitual existirem ideologias inerentes à cultura de estilo acerca de produção própria e aproveitamento de meios próprios. Exemplos mais concretos disto são bandas e artistas que gravam nos seus home studios e lançam demos/mixtapes em nome próprio, sem qualquer editora por trás, algo bastante comum em estilos como o Punk e o Hip Hop. O mesmo se aplica à mítica ideia do artista Folk de guitarra às costas, que faz as suas pequenas tours em bares de open mic e viaja de comboio entre cidades. É parte enraizada da cultura fazer o máximo possível com os recursos existentes.
Apliquemos isto ao âmbito dos festivais e da produção cultural. Fazer eventos com pouco mais que uma sala e um PA é algo que muitos já experienciaram. Um teste à capacidade de gestão de qualquer indivíduo ou entidade que tenha mais vontade em programar do que meios (logísticos e financeiros) para o fazer.
Quando um evento é organizado por um promotor que muitas vezes é apenas um indivíduo que tem que garantir que todas as tarefas e condições são cumpridas, o leque de ferramentas e skills necessárias a esta atividade acaba por se desenvolver de forma orgânica.
Tomando por exemplo, um cenário hipotético dum concerto de 3 bandas numa sala/bar para 100 pessoas. O promotor está responsável por:
Marcar as bandas e negociar termos e cachet de cada uma
Interpretar e garantir o cumprimento dos riders técnicos e de hospitalidade
Negociar as condições de utilização da sala e perceber se esta se adequa às necessidades do evento
Fazer todo o material gráfico e promocional para a divulgação do concerto
Gerir o marketing e divulgação do evento - redes sociais, artigos press, colagem de cartazes, etc.
Gerir o orçamento (na sua maioria investimento do próprio promotor) do evento
Garantir que o evento decorre de forma fluida e que são cumpridos todos os pontos importantes - horários, riders, refeições, comunicação com bandas e sala, etc.
A adicionar a isto, muitas vezes o promotor ainda é membro integrante de bandas a atuar no evento que organiza, ou é a própria banda que marca os seus concertos com bandas de estilo semelhante com quem têm relação.
Abaixo, um pequeno testemunho sobre o assunto em questão numa entrevista a Ricardo Dias "Congas" (HAUS) para o Circuito Malmandado (2022).
Olhemos para festivais que, apesar do sucesso e da dimensão atual, tiveram um começo humilde, com origens no meio underground/DIY.
Exemplos claros do nosso país são festivais como o SWR Barroselas Metalfest. Um festival criado por dois irmãos amantes de música extrema no final dos anos 90 e que atualmente é dos maiores festivais de Metal extremo em Portugal. Com nomes como Venom, Entombed AD, Immortal, Napalm Death, Bolt Thrower, Mayhem, entre outros, o festival que em 1998 se realizou com bandas de amigos na Casa do Povo de Barroselas, é hoje um festival de culto. Com centenas de fãs de Metal a dirigirem-se à vila pertencente ao concelho de Viana do Castelo, está no mapa dos festivais de Metal europeus.
Outro exemplo, também no espectro da música pesada, mas na sua vertente mais artística e eclética, temos o Amplifest. Organizado pela Amplificasom desde 2012, estabeleceu-se como um festival de nicho com cartaz e curadoria de luxo. Com várias edições esgotadas, o festival foi National Winner da categoria Best Small Festival da 7ª edição dos Iberian Festival Awards e recebe a cada edição representação intercontinental, seja de bandas e artistas, como de fãs e até promotores de eventos semelhantes noutros países.
Créditos: Geert Braekers (Amplifest 2022)
Distinguimos a presença de Walter Hoeijmakers (Roadburn Festival, Holanda), entrevistado para a Evil Greed (2019).
Pela Europa fora, temos exemplos como o Roskilde Festival, que acontece desde 1971 na Dinamarca e começou como sendo um evento organizado por dois universitários dinamarqueses que queria recriar o Woodstock. Com um início atabalhoado, o festival acabou por se estabelecer como o maior festival de arte no norte da Europa, recebendo cerca de 30 mil voluntários e 130 mil fãs por edição. Um line up eclético que preenche oito dias de arte e música com os mais variados estilos musicais e artistas de calibre mundial. A juntar a isto está o facto de se tratar dum "festival sustentável e sem fins lucrativos", como explicou Signe Lopdrup, na 7ª edição do Talkfest.
Mais um exemplo internacional no espectro da cultura Punk, Metal e música pesada é o Resurrection Fest. Sem dúvida o maior festival de Metal da península ibérica, que começou por ser um evento gratuito com o apoio do município (Concello) de Viveiro, com intuito de levar à localidade uma das bandas favoritas dum grupo de amigos ligado ao Punk e à cultura alternativa. Já na 18ª edição, o festival contou com vários sold outs e levou a Espanha artistas como Megadeth, Iron Maiden, Slipknot, KISS, Slayer, Rammstein, entre outros. O festival, com vários prémios nos Iberian Festival Awards, leva também a cabo o papel de dinamizador da cena musical ibérica, ao realizar um concurso de bandas que dá oportunidade a novos talentos de se mostrarem a um público tão grande como o do Resurrection.
Aqui fica o documentário acerca do Resurrection Fest, no ano em que celebraram 15 anos de festival (2020).
Concluindo, com uma breve nota de opinião pessoal, considero que exista uma relação entre a programação ao nível underground/DIY e a aquisição de competências indispensáveis para uma carreira na indústria da música, em especial da música ao vivo. Fazendo o melhor possível com o pouco que se tem e desempenhando tantas funções em simultâneo dá experiência e vivência que distinguem estes profissionais. Se sem recursos estes promotores, produtores, artistas, agentes, etc. já faziam o seu melhor, quando lhes são postos à disposição recursos logísticos e financeiros maiores, terão uma maior capacidade de adaptação, gestão e produção, que optimize da melhor forma possível os recursos que têm ao seu dispor a cada momento. Como indica o provérbio, "a necessidade aguça o engenho", e nestas camadas da indústria isso é prova viva, responsável pela formação no terreno, na famosa "escola da vida" de muitos profissionais dos nossos setores da cultura.
Referências bibliográficas:
Amplifest (2023) Amplificasom. Available at: https://amplificasom.com/amplifest/ (Accessed: April 18, 2023).
Barroselas - Portugal (no date) SWR Barroselas Metalfest. Available at: https://www.swr-fest.com/history (Accessed: April 18, 2023).
The festival (2023) Roskilde Festival. Available at: https://www.roskilde-festival.dk/en/about/the-festival/ (Accessed: April 18, 2023).
Media, M. (2018) Roskilde Festival, issuu. from TPi August 2018 - # 228 by Mondiale Media. Available at: https://issuu.com/mondiale/docs/tpiaug18_digitallr/s/8263 (Accessed: April 18, 2023).
Moran, I.P. (no date) Punk: The do-it-yourself subculture - western Connecticut State University. Available at: https://westcollections.wcsu.edu/bitstream/handle/20.500.12945/2257/2010_moran.pdf?sequence=2 (Accessed: April 18, 2023).
Resurrection fest - web oficial (2023) Resurrection Fest Estrella Galicia. Available at: https://www.resurrectionfest.es/ (Accessed: April 18, 2023).
Comments