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O rigor e o método que os palcos exigem, por Nuno Cruz (diretor Roadies DC / Sleep'em'All)

É inútil tentar contabilizar num parágrafo todos os festivais em que Nuno Cruz esteve envolvido desde 1999. É Stage Manager, Production Manager e está ainda por trás da Roadies DC, a grande referência no aluguer de backline em Portugal e nos serviços de stage/production management, empresa que em 2013 trouxe para o nosso país uma nova solução de alojamento para os festivais de música portugueses, com a Sleep’Em’All. Falou com a Aporfest, a partir de Las Vegas, quando se encontrava a trabalhar na primeira edição do Rock In Rio USA. Partilha connosco uma experiência em campo única e uma visão do palco que todos os festivaleiros gostariam de ter, sendo também associado da APORFEST.


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Aporfest – Tiago Fortuna (A): A Roadies DC foi fundada em 1999, viram os festivais crescerem e instituir-se como são hoje. Como foi, na sua perspetiva, este percurso?

Nuno Cruz (NC): Tem sido interessante, os festivais atualmente fazem parte de uma cultura para quem gosta de música, para quem vive o verão como uma experiência ligada à música e ao convívio. Têm-se afirmado como marcos na cultura musical nacional, temos público fiel que ruma a determinado festival independentemente do seu cartaz; temos público-alvo que tem como meta determinado Festival como a sua primeira experiência; existem festivais de todo o tipo de música, de todos os géneros para todos os gostos, em locais excecionais que conjugam a música, o bem-estar, o convívio e a gastronomia. Em alguns casos, por um determinado valor, podes acampar durante uma semana, estar com os teus amigos e ver em diferentes palcos mais de 50 artistas. Têm também conseguido atrair público internacional que procura este tipo de oferta como forma de turismo. Somos um país com um excelente clima, muito bem posicionado geograficamente, com uma costa marítima que proporciona boas experiências e somos um país bastante acessível economicamente para quem nos visita.

Os palcos têm mudado muito?

Claro, os Artistas/Bandas têm mudado bastante. Os conceitos de espetáculo têm uma componente visual cada vez mais presente. Dependendo do “peso” do artista as exigências passam por ter ecrãs em palco e laterais a passar os seus conteúdos. Mesmo tentando manter um “Festival Mode”, para otimizar quer as logísticas dos Festivais quer o próprio Routing das Tours, praticamente quase todos os Headliners/Co-headliners em Festivais trazem o seu “Floor Package” (Complemento de Iluminação). As estruturas dos palcos em Festivais são cada vez maiores, para acomodar cenografia, desenhos de luz mais complexos, pirotécnica, vídeo, etc. Os palcos e as suas áreas de serviço são maiores, com maior capacidade de colocação de peso na sua estrutura e capacidade operacional para acomodar equipamentos durante as montagens, mudanças de palco ( Change-Over) e desmontagens/saída de equipamentos (Load Out).

Existe uma maior sensibilidade e profissionalismo para acomodar de forma segura e exata uma banda como os Muse, Coldplay ou Rolling Stones, contando que nesse dia ainda irão atuar mais 3 ou 4 bandas. A logística é imensa, o trabalho de casa bastante e o ‘advance’ para estas situações acontece muitos meses antes. Existem dias em que tenho em palco cerca de 100 pessoas, entre equipas técnicas residentes, equipas técnicas de artistas, artistas comitivas, etc.

Os palcos dos festivais precisam de uma configuração específica para conseguir receber todos os artistas?

Sem Dúvida. Não só temos de pensar no palco, e na estrutura e tipo de espetáculo que determinado artista vai apresentar num Festival, como tudo o que isso implica. É necessário dimensionar áreas de serviço adequadas; altura de palco e das áreas de serviço; docas para carga/descarga de equipamento; áreas de backstage para camiões/Tour Bus; acesso e espaço de manobra.

Como grande parte das Tours de Headliners se faz acompanhar por equipas que chegam facilmente a 50 pessoas (Iluminação, Vídeo, Aúdio, backline, cenografia, Guarda-Roupa, etc.) todas estas equipas têm equipamento e necessitam de criar o seu “world” em Palco, o que obriga a preparar antecipadamente esta logística e espaços para que tudo aconteça no palco. A somar a este headliner contas com mais 3, 4 ou 5 bandas, e tens um mundo. Centenas de pessoas, uma constante movimentação de camiões, carrinhas, equipamentos...tudo num único dia (Longo), ritual que se repete durante os 3 ou 4 dias de festival.

Uma das preocupações atuais é sem dúvida a capacidade de carga dos palcos, acessos e as suas áreas de serviço.


O que faz um stage manager ao longo de um dia num festival?

No meu caso em particular, que acumulo a função de Production Manager, por gostar de estar envolvido e ter respostas em primeira mão, acaba por ser um dia longo. Desde load in (entrada de equipamentos em palco) às 6 da manhã até ao load out (saída desses equipamentos) desse mesmo artista até às 3 de manhã, muita coisa acontece.

Ponho em prática tudo o que fui preparando nos últimos meses. Vou gerindo a colocação em palco dos diferentes equipamentos e montando a operação de ensaios, entrada e saída de palco para as áreas de serviço, numa ordem lógica e organizada, que me permita fazer entrar esses equipamentos dentro dos horários que temos para as mudanças de palco. Em alguns casos cerca de 15 minutos, tudo tem de acontecer duma forma rápida e metódica, se esta operação não for pensada, muito provavelmente corre mal. Depois do trabalho de escritório e troca de centenas de emails, geralmente passo a semana antes do Festival em palco, a “respirar” o seu espaço e a fazer o meu jogo mental de como tudo irá acontecer. Tenho já nessa altura todos os requisitos técnicos na cabeça e tento visualizar toda a operação, desde a colocação dum camião na doca até aos acessos dos artistas e movimentação da sua equipa, a forma como vou movimentar os estrados com os instrumentos (Bateria, teclados, etc). Como vou fazer a entrada e saída dos equipamentos de iluminação complementar, em alguns casos tenho torres de iluminação mais altas do que a altura disponível entre o Palco e as áreas de serviço.

Geralmente é um processo que faço sozinho com o palco vazio e ainda na conclusão de alguns detalhes, sem equipamentos, sem pessoas.


É um trabalho viciante?

Sem dúvida, aqui sou bastante suspeito para falar, estou muito envolvido em festivais, e durante todos estes anos tenho tido o privilégio de participar nos melhores festivais. Tenho tido o prazer de conhecer muita gente, partilhar experiências, adaptar-me a diferentes realidades, promotores, equipas, feitios, egos, culturas. Ao fim de algum tempo começas a cruzar-te com as mesmas equipas de artistas nacionais e internacionais, vais melhorando a tua forma de estar e o teu sentido profissional, vais tendo o apreço e retorno a nível nacional e internacional. Chegas a um ponto em que o rigor e exigência profissional é tanto que te vês envolvido a 100%, totalmente absorvido que chega a parecer fácil, mas na verdade estás num trajeto em que a margem de erro tem de ser mínima ou vais comprometer uma operação gigantesca que pode atingir milhares de pessoas.

Sim, é muito viciante e muito gratificante, gosto bastante do que faço e de como tem sido o meu percurso profissional, um misto de sorte e muita dedicação.


Tem uma estória concreta que nos gostasse de contar?

Tem sido tudo bastante intenso nos últimos 10 anos, as experiências têm sido muitas e regra geral bastante positivas. Talvez uma situação que mereça relevo seja o facto de em 2011 ter rumado ao Rio de Janeiro para fazer o Rock in Rio, uma das experiências mais difíceis nestes 25 anos. Nada parecia funcionar, todo o trabalho de casa parecia não surtir efeito, estava num país diferente. O tempo de resposta era totalmente diferente, o brio profissional em geral não existia, nada parecia ser para cumprir. Confesso que na segunda semana de festival, e contrariamente ao que me ia na alma, pensei em desistir. Mas tudo aconteceu e com tantas dificuldades acabou por ser não só uma das experiências mais difíceis, mas também das mais enriquecedoras a nível de aprendizagem. No final do festival, já praticamente de rastos, fui convidado pelo Tour Manager Tim Moss e o próprio Mike Patton, para fazer um pequena tour dos Faith No More na América Latina: Argentina, Uruguai, Chile e Brasil.

Em 2013 regressei ao Brasil para outra edição do RIR e tudo correu a 100%, com base na experiência de 2011, foi possível retificar e adaptar diferentes situações e equipas para que nesse ano a operação fosse um sucesso.


O que pode ser melhorado nos festivais portugueses?

Acho que os festivais Portugueses estão de boa saúde, eventualmente e como em tudo no mundo, o que precisa por vezes de ser melhorado são as pessoas e os meios. Sem estes dois fatores não se conseguem fazer milagres. Por um lado tens de ter pessoas competentes, que valorizem o seu trabalho e os dos outros, que sejam apaixonadas pelo que fazem, se dediquem a 100% e invistam todas as suas energias para fazer acontecer tudo duma única forma. Fazer bem, fazer mal ou desenrascar não é opção.

Por outro lado tens de ter os meios, em particular os financeiros, sem os quais será difícil montar toda a estrutura de um festival que é bastante pesada. A implantação dum festival e tudo o que isso implica, as diferentes necessidades, a contratação de um forte line-up que fará o festival ser bem-sucedido, os meios de divulgação e apoios, etc. Se estas condições estiverem reunidas será apenas necessário juntar o acompanhamento natural das tendências do mundo e do público.

A vantagem de termos um clima fantástico, potencia a vertente do turismo e da procura por parte do público estrangeiro, que vê em Portugal uma opção a grandes festivais da Europa, alguns com cartazes quase semelhantes, com a mais-valia de ter Sol e o consumo ser bem mais barato para esse tipo de público.


Como surgiu a oportunidade de criar a Sleep'em'All e porque fez sentido para si investir no projeto?

oportunidade de criar a Sleep’em’All surgiu no “sofá” de casa, numa ambição de estar ligado a mais festivais não só nacionais mas também internacionais. O País atravessava uma crise financeira, que claramente se abateu também sobre o meio dos espetáculos, a Roadies DC baixou os seus rendimentos e como tal julguei ser necessário criar uma nova área de negocio para conseguir colmatar a atual estrutura e despesa da empresa, a atividade de aluguer de backline revelava-se insuficiente para a estrutura mensal da empresa.

Numa constante pesquisa e análise de festivais e mercados internacionais, deparei-me um dia com a questão do alojamento em festivais. Um conceito bastante divulgado em Inglaterra, mas pouco ou nada aproveitado no resto da Europa. As diferentes opções e a atmosfera fantástica que se criam nestas situações fizeram-me pesquisar mais a fundo esta opção, quanto mais pesquisei mais me envolvi e acreditei ser uma boa opção.

Tentei trazer para Portugal uma fornecedor Inglês, que se mostrou pouco recetivo a parcerias, e então optei por descobrir e desenvolver os nossos produtos através de fornecedores em Espanha, Holanda e Inglaterra. O acesso direto aos festivais e diferentes promotores já existia, e quando apresentei a ideia tive logo boa receção e bastante incentivo, como foram os casos de Paredes de Coura, Alive, Vagos Open Air, Musa e Festival Música do Mundo, que perceberam a necessidade de criar um novo espaço de alojamento, cuidado e com maior conforto para o seu público. Aliás, uma dificuldade que eu próprio sinto como técnico em alguns festivais que acontecem em zonas rurais é que a oferta de alojamento é bastante reduzida.


Como tem sido a recetividade?

A recetividade tem sido bastante positiva, a Sleep’em’All (SEA) além do seu conceito acaba por ser um bom cartão-de-visita para um festival. É uma mais-valia para um determinado público-alvo, que por vezes se mantém afastado dos festivais. Um público que apesar de querer ir não pretende optar pelo campismo tradicional. A área da SEA, a atmosfera, a cor e a forma como toda a equipa SEA está presente e recebe os seus convidados tem sido bastante positiva, em 3 anos físicos temos clientes que repetem todos os anos e que se tornaram amigos pessoais. Temos recebido pessoas de várias nacionalidades, de vários países da Europa e países como a Austrália, EUA, Canadá, China, Israel, Moçambique ou o Brasil.

No segundo ano, conseguimos alcançar a internacionalização através do Festival Vieilles Charrues, na Bretanha, em França, com uma lotação de 220 000 pessoas em 4 dias de Festival, numa povoação com cerca de 8.000 habitantes. Estamos já com esse festival praticamente esgotado, e vamos marcar presença em mais 3 festivais em França. Conseguimos também alargar a nossa presença aos Açores e a mais alguns festivais em Portugal. Estando já em negociação outros festivais para 2016 na Europa.

Outro fator interessante é o facto de estarmos a trabalhar com dois operadores de venda de experiências para festivais, um a nível nacional, a Get a Fest, e outro a nível internacional e Festicket.


A APORFEST pode trazer beneficio à indústria dos festivais de música?

Acredito que sim, toda a indústria em crescimento tem necessidade de ser regulada e regulamentada, acho que pode ser interessante e bastante positivo a sinergia e discussão como tem vindo a acontecer. Aliás, as associações ou organismos dedicados a festivais já não são novidade na Europa em Países como a França, Holanda e Inglaterra.

Uma coisa que tenho reparado em festivais na Europa é que se fores a alguns sites dos festivais, eles te direcionam para outros festivais denominados como “Festivais amigos”: são festivais que não interferem uns com os outros mas que se ajudam a auto promover. É um tipo de ligação que já existe de alguma forma entre alguns festivais nacionais e espanhóis, essencialmente na contratação de Bandas. Das diferentes reuniões que fiz na Europa, em particular em França, tenho tido a perceção que muitos acontecem com uma componente cultural e social muito forte, são organizações sem fins lucrativos que revertem os seus lucros para o desenvolvimento de regiões, como acontece na Bretanha, Normandia e Bourdéus.

Os Festivais são já uma forte presença na economia e Turismo nacional, os clientes da Sleep’em’All na altura do Alive são cerca de 95% público internacional. Acho que é importante estar atento a estes dados e acompanhar o seu desenvolvimento de forma sustentada para que apesar da nossa limitação geográfica, por sermos um país pequeno, não se perca a iniciativa e vontade de manter e apostar nesta forma cultural.

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